Depois de dois meses sem fazer uma
publicação no blog, decidimos retomar, finalmente, as atividades. Para isso,
elegemos como tema a distopia, podendo levar em consideração a data
comemorativa dos 50 anos do golpe, que instaurou durante 21 anos (1964 – 1985)
a Ditadura Militar no Brasil.
Preferi não escolher uma produção que
mostrasse diretamente os anos do regime no país, como “Zuzu Angel” (2006), de
Sérgio Rezende, “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006), de Cao
Hamburger, ou o recente documentário “O dia que durou 21 anos” (2012), de
Camilo Tavares, mas usei dois critérios fundamentais para minha escolha: 1) um
filme que, como foi citado anteriormente, não representasse diretamente o
regime do Brasil, mas que fosse uma alegoria temática como um todo; 2) um filme
que tenha sido fundamental para minha formação crítico-intelectual. Para tal,
não poderia ter escolhido um filme melhor baseado nos dois pressupostos: “V de
Vingança” (2005), de James McTeigue – assistente de direção de célebres obras,
como a trilogia Matrix e o episódio II de Star Wars, “Ataque dos Clones”. Meu
receio, desde sempre, foi não conseguir escrever sobre a obra, devido sua
complexidade.
Baseado na história em quadrinhos de
Alan Moore – deixo claro desde já que meu intuito aqui não é comparar a
produção original com a adaptação cinematográfica -, “V de Vingança” é uma obra
que deixa claro, desde o começo, seu espírito revolucionário sob duas
perspectivas. A primeira delas diz respeito à temática em si, colocando o
clamor da revolução como busca insaciável do protagonista frente uma Inglaterra
abalada pelo regime autocrático do Alto Chanceler Adam Sutler; na segunda, uso
o termo “revolução” para designar o papel de super-herói que o protagonista
exerce dentro do conjunto de histórias em quadrinhos, sendo este uma personagem
que, diferentemente de alguns outros, não se “transformou” – ou nasceu -
perante uma situação mágica, surreal, ou parte de uma situação cabível à
ciência e torna-se um elemento também surreal – fator presente nos quadrinhos
da Marvel, por exemplo. Contudo, V transforma-se nesse herói coletivo frente às
injustiças sociais e do autoritarismo político, desencadeando uma radical
mudança ideológica mesclada a um enorme sentimento de revolta. Entretanto, seu
senso de justiça não parte do problema menor, como ocorre com os famosos
justiceiros – Homem Aranha, Super Homem, etc. -, que capturam bandidos e são
aclamados – ou não – pela população, mas atinge diretamente a fonte maior dos
problemas, sua justiça é feita pela base, ou seja, pelo governo. “V” alegoriza
os heróis revolucionários de tempos passados, tendo um discurso político forte
e radical, onde combate veementemente os meios de repressão do Estado.
Para compor essa brilhante obra,
vários alicerces foram utilizados, fazendo referências a estes em vários
momentos do longa. Em 1984, de George Orwell, a imagem do “Big Brother” podia
ser encontrada em todas as casas daquela sociedade também distópica, e em “V de
Vingança” não é diferente, uma vez que a imagem do Alto Chanceler ficava bem
acima das TVs, juntamente com a bandeira do partido “Fogo Nórdico”. Podemos,
ainda, fazer analogias entre as histórias de V e de Edmond Dantès –
protagonista de seu filme favorito, “O Conde de Monte Cristo” -, pois ambos
foram presos de maneira injusta e ao saírem arquitetam durante muito tempo suas
vinganças, porém sob uma nova identidade. Também em relação ao intuito de usar
a máscara, pode-se assemelhar esse ato com “O Fantasma da Ópera”. Tanto V
quanto o Fantasma a utilizam para esconder suas deformidades do rosto – devido
ao passado trágico -, estimulando outras pessoas pela imaginação e discurso.
Além do uso da máscara, a analogia continua pelo fato de ambos terem levado
suas amadas a seus “esconderijos”, a fim de reeduca-las.
Para, enfim dar o pontapé inicial à
resenha, devo, antes de tudo, evidenciar que, assim como o filme, minha análise
partirá sobre três momentos: apresentação, vingança pessoal e vingança
coletiva. Divido desse modo por motivos didáticos, para que assim possa
policiar melhor minha escrita e não deixar o texto tão confuso, que é meu maior
medo quando se trata de escrever sobre “V de Vingança”.
Parte I: Apresentação
O filme, que ocupa a 148ª posição do
“Top 250” (IMDB), com nota 8.2, e que foi indicado a diversos prêmios – acabou
ganhando alguns deles – ao redor do mundo, desde atuação dos atores à qualidade
do filme em si, começa nos apresentando o fator histórico que influenciou o
protagonista: “Noite de Guy Fawkes” (5 de novembro de 1605), onde a mente
revolucionária tentou explodir o Parlamento inglês e acabou sendo capturado,
torturado e executado. Começando, agora, por apresentar-nos os dois
protagonistas, “V”, interpretado por Hugo Weaving e sua inconfundível voz
misteriosa que dá toda a entonação sinistra do longa, e “Evey”, interpretada
por Natalie Portman, mostram sincronia entre seus movimentos desde ambos
sentarem-se em frente à penteadeira a ignorar o apresentador da TV, mostrando indignação
com as diversas bobagens vomitadas pelo apresentador. Logo em seguida os dois
se conhecem pessoalmente, devido ao papel que V desempenha ao proteger Evey,
levando-a para conhecer o que ele já havia programado: a destruição de um
prédio público na noite de 5 de novembro – esse é o primeiro ato programado por
V.
Acima é interessante notarmos, além da
semelhança sonora que os nomes possuem entre si, as diversas referências ao
número 5 - dia em que se arquiteta a revolução -, que sempre é tratado de
maneira simbólica. “V”, primeira letra da palavra “vingança”, “vendeta” e “vengeance”,
também representado por “V” em números romanos - número da cela onde ele foi
aprisionado no complexo de Larkhill, espécie de prisão política. Para o nome
“Evey”, percebemos que a primeira letra, “E”, é a quinta letra do alfabeto,
seguido de “vey”, que se assemelha sonoramente ao nome do protagonista.
Quando V invade a rede de televisão “BTN” –
vale notar que Evey trabalha no local - para perpetuar à população londrina seus
ideais libertadores, cresce entre ele e Evey a relação de confiança mútua, uma
vez que, agora, a situação se inverte e é ela quem salva a vida de V, deixando
um policial inconsciente. Ao mesmo tempo em que ela torna-se fiel seguidora de
V, é considerada uma pessoa de alto risco ao Estado. Na residência do herói,
que nos remete analogamente aos esconderijos dos super-heróis, que também
necessitam preservar a identidade intacta, a relação de confiança começa a
aflorar entre eles, pois Evey promete ajudar V a continuar com seu plano revolucionário:
retomar o ideal de Fawkes e destruir o Parlamento.
Com diversas referências ao poder de
manipulação da TV, essencialmente quando é questionado se a mentira criada para
encobrir o “atentado terrorista” irá funcionar e fazer com que a população
acredite, um funcionário da emissora diz a seguinte frase: “Claro que vão, essa
é a BTN”, V utiliza-se desse mesmo meio para disseminar suas ideias
revolucionárias, mostrando, desde aquele momento do filme, que o
descontentamento da população para com o modelo autocrático já vinha
acontecendo, contudo, faltavam-lhe um líder, uma mente libertária. Quando seu
vídeo é exibido em todas as televisões e, principalmente, em um gigantesco
telão na rua, percebe-se que as pessoas param para ouvir aquele discurso
radical anti-governo, colocando em evidência, em momentos seguintes, a
discordância das pessoas em relação às notícias exibidas pela “BTN”.
Parte II: Vingança pessoal
Quando entramos na primeira vingança
de V, pisamos em um solo arenoso no que concerne a problemática que deve, aqui,
ser discutida antes de continuarmos com a análise: a questão do herói ou
anti-herói. Se tomarmos Aristóteles e outros filósofos e críticos da
literatura, principalmente clássica, como padrão para a análise desse problema, depreendemos que V entra na categoria de anti-herói. Para o filósofo grego, o
herói deve ser aquele que sobrepõe-se à raça humana, aquele que está no mesmo
patamar dos deuses, ao menos em questões éticas e morais. V, ao contrário dos
antigos heróis clássicos, não tem sua moral muito bem definida, uma vez que, em
primeira instância, sua vingança não é para o bem coletivo, tendo, ao invés
disso, sua vingança pessoal, a fim de eliminar aqueles que fizeram parte, de
alguma forma, do complexo de Larkhill – prisão política -, além de usar a
violência para todos os fins, não tendo piedade ao eliminar/utilizar pessoas
para cumprir seus deveres de justiça.
Contudo, o terreno arenoso não
termina por ai, pois também devemos analisar essas “figuras” que V eliminou em
sua vingança pessoal, bem como “a voz de Londres”, personagem que nos remete à
ideia do espetáculo midiático e ao sensacionalismo, usando todo seu poder
oratório para manipular a população londrina a favor do Alto Chanceler Adam
Sutler; o Bispo, que trabalhou em Larkhill torturando presos; e a médica
legista, que contribuiu, na época, com a pesquisa da arma biológica, realizando
os testes também nos presos. A partir disso percebe-se que essa vingança de
primeiro plano contribui para a segunda etapa, uma vez que essas pessoas
eliminadas, principalmente “a voz de Londres”, faziam parte de uma classe
essencial ao Estado em termos de contribuição – a manipulação realizada por
meio da TV e o desenvolvimento da arma biológica que contaminou a cidade, dando
suporte para a ascensão do poder autocrático. Todo o andamento do filme,
partindo do primeiro ao segundo estágio da vingança, pode ser representado
simbolicamente no final do filme, quando V está montando seu “escudo” com peças
de dominó e quando está pronto derruba todos a partir do primeiro,
desencadeando o tão famoso “efeito dominó”, onde um fator levou a outro,
partindo de uma problemática menor – a prisão de V em Larkhill criando um
“monstro”, como ele se auto-denomina – a maior – o colapso do governo pelo
cidadão que sofreu, diretamente, com represálias desse poder totalirário. Mesmo
com a vingança pessoal dando alicerce à coletiva, V não perde a classificação
de “anti-herói”.
No
momento em que o protagonista está realizando sua vingança, Evey está escondida
na casa de seu amigo humorista, que também possui ideologias transgressoras e
possui artefatos considerados “perigosos” aos olhos do Estado, como o Alcorão –
livro sagrado dos muçulmanos –, mostrando, assim, a repressão religiosa que os
habitantes sofriam. Mostrando para o país inteiro seus ideais ao ignorar a
comissão de censura da BTN, ele apresenta um programa com várias críticas ao
governo, como vários policiais apontando suas armas à plateia, fazendo com que
eles aplaudam a entrada da personagem que representava o Chanceler Adam Sutler,
mostrando-o como sendo o próprio terrorista do país, não V. Ao sofrer as
consequências e ser capturado, a cena do quarto nos remete às lembranças de
Evey, pois há extrema semelhança entre a captura de seus pais e do humorista. Para
fugir, a protagonista pula da janela e é capturada por uma pessoa, dando entrada
ao terceiro e último estágio do longa.
Parte III: Vingança coletiva
Na primeira vez que assistimos o filme
somos levados a crer que o Estado capturou Evey e a está usando para conseguir
informações sobre V, mas não. Quem na verdade captura a protagonista é V e seu
intuito é fazer com que ela perca seus medos, que tenha o mesmo sentimento de
revolta que ele possui. Para isso, ele utiliza a mesma carta que serviu de base
para sua revolta: a história de Valerie, personagem homossexual que conta seu
sofrimento causado pela perseguição do Estado a fim de capturar cidadãos com
outro tipo de escolha sexual que não fosse o heterossexualismo. Depois de todo
esse processo, V finalmente tem Evey a seu lado, tendo-a como fiel escudeira.
As ideias de V tiveram forte impacto
na população que ouviu seu discurso pela TV, causando uma série de fatos que
deixaram a população extremamente consciente de sua situação política, abrindo
espaço para milhares de adeptos e tornando possível uma revolução. Com a
desfragmentação do poder autoritário – traição por parte de membros do partido
e o discurso oficial de Adam Sutler ser assistido por cadeiras e salas vazias
(uma das cenas mais geniais do filme) – e a morte do Alto Chanceler, a
revolução se instaurou facilmente, apesar dos milhares de soldados que foram
convocados para conter os ânimos revolucionários. Vale, nesse momento, citar
mais um célebre diálogo do longa – a todo momento os diálogos são fortes e
denunciam abusos de poder - : quando todos os militares estão com as armas
apontadas no sentido do contingente de pessoas que usavam a máscara de Guy
Fawkes, questionam sobre o que irá acontecer e a resposta é simples e
repreensiva: “O que sempre acontece quando pessoas desarmadas enfrentam pessoas
armadas”.
Ao final, conclui-se o ato que foi
tentado por Guy Fawkes anos antes: a destruição do Parlamento. Essa queda do
prédio simboliza muito mais do que simplesmente parece, pois destrói-se a
representação, a imagem do autoritarismo, tornando esse ato como uma alegoria
do descontentamento da população com o poder que se instaurou até aquele
momento. Sendo, então, a vingança de V para toda a população, pois suas ideias
de revolução, a partir de sua revolta, mudaram a vida de todos os cidadãos que
também sofriam com o poder autoritário.