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terça-feira, 8 de abril de 2014

"Remember, remember, the 5th of November"


Depois de dois meses sem fazer uma publicação no blog, decidimos retomar, finalmente, as atividades. Para isso, elegemos como tema a distopia, podendo levar em consideração a data comemorativa dos 50 anos do golpe, que instaurou durante 21 anos (1964 – 1985) a Ditadura Militar no Brasil.
Preferi não escolher uma produção que mostrasse diretamente os anos do regime no país, como “Zuzu Angel” (2006), de Sérgio Rezende, “O ano em que meus pais saíram de férias” (2006), de Cao Hamburger, ou o recente documentário “O dia que durou 21 anos” (2012), de Camilo Tavares, mas usei dois critérios fundamentais para minha escolha: 1) um filme que, como foi citado anteriormente, não representasse diretamente o regime do Brasil, mas que fosse uma alegoria temática como um todo; 2) um filme que tenha sido fundamental para minha formação crítico-intelectual. Para tal, não poderia ter escolhido um filme melhor baseado nos dois pressupostos: “V de Vingança” (2005), de James McTeigue – assistente de direção de célebres obras, como a trilogia Matrix e o episódio II de Star Wars, “Ataque dos Clones”. Meu receio, desde sempre, foi não conseguir escrever sobre a obra, devido sua complexidade.
Baseado na história em quadrinhos de Alan Moore – deixo claro desde já que meu intuito aqui não é comparar a produção original com a adaptação cinematográfica -, “V de Vingança” é uma obra que deixa claro, desde o começo, seu espírito revolucionário sob duas perspectivas. A primeira delas diz respeito à temática em si, colocando o clamor da revolução como busca insaciável do protagonista frente uma Inglaterra abalada pelo regime autocrático do Alto Chanceler Adam Sutler; na segunda, uso o termo “revolução” para designar o papel de super-herói que o protagonista exerce dentro do conjunto de histórias em quadrinhos, sendo este uma personagem que, diferentemente de alguns outros, não se “transformou” – ou nasceu - perante uma situação mágica, surreal, ou parte de uma situação cabível à ciência e torna-se um elemento também surreal – fator presente nos quadrinhos da Marvel, por exemplo. Contudo, V transforma-se nesse herói coletivo frente às injustiças sociais e do autoritarismo político, desencadeando uma radical mudança ideológica mesclada a um enorme sentimento de revolta. Entretanto, seu senso de justiça não parte do problema menor, como ocorre com os famosos justiceiros – Homem Aranha, Super Homem, etc. -, que capturam bandidos e são aclamados – ou não – pela população, mas atinge diretamente a fonte maior dos problemas, sua justiça é feita pela base, ou seja, pelo governo. “V” alegoriza os heróis revolucionários de tempos passados, tendo um discurso político forte e radical, onde combate veementemente os meios de repressão do Estado.
Para compor essa brilhante obra, vários alicerces foram utilizados, fazendo referências a estes em vários momentos do longa. Em 1984, de George Orwell, a imagem do “Big Brother” podia ser encontrada em todas as casas daquela sociedade também distópica, e em “V de Vingança” não é diferente, uma vez que a imagem do Alto Chanceler ficava bem acima das TVs, juntamente com a bandeira do partido “Fogo Nórdico”. Podemos, ainda, fazer analogias entre as histórias de V e de Edmond Dantès – protagonista de seu filme favorito, “O Conde de Monte Cristo” -, pois ambos foram presos de maneira injusta e ao saírem arquitetam durante muito tempo suas vinganças, porém sob uma nova identidade. Também em relação ao intuito de usar a máscara, pode-se assemelhar esse ato com “O Fantasma da Ópera”. Tanto V quanto o Fantasma a utilizam para esconder suas deformidades do rosto – devido ao passado trágico -, estimulando outras pessoas pela imaginação e discurso. Além do uso da máscara, a analogia continua pelo fato de ambos terem levado suas amadas a seus “esconderijos”, a fim de reeduca-las.
Para, enfim dar o pontapé inicial à resenha, devo, antes de tudo, evidenciar que, assim como o filme, minha análise partirá sobre três momentos: apresentação, vingança pessoal e vingança coletiva. Divido desse modo por motivos didáticos, para que assim possa policiar melhor minha escrita e não deixar o texto tão confuso, que é meu maior medo quando se trata de escrever sobre “V de Vingança”.


Parte I: Apresentação


O filme, que ocupa a 148ª posição do “Top 250” (IMDB), com nota 8.2, e que foi indicado a diversos prêmios – acabou ganhando alguns deles – ao redor do mundo, desde atuação dos atores à qualidade do filme em si, começa nos apresentando o fator histórico que influenciou o protagonista: “Noite de Guy Fawkes” (5 de novembro de 1605), onde a mente revolucionária tentou explodir o Parlamento inglês e acabou sendo capturado, torturado e executado. Começando, agora, por apresentar-nos os dois protagonistas, “V”, interpretado por Hugo Weaving e sua inconfundível voz misteriosa que dá toda a entonação sinistra do longa, e “Evey”, interpretada por Natalie Portman, mostram sincronia entre seus movimentos desde ambos sentarem-se em frente à penteadeira a ignorar o apresentador da TV, mostrando indignação com as diversas bobagens vomitadas pelo apresentador. Logo em seguida os dois se conhecem pessoalmente, devido ao papel que V desempenha ao proteger Evey, levando-a para conhecer o que ele já havia programado: a destruição de um prédio público na noite de 5 de novembro – esse é o primeiro ato programado por V.
Acima é interessante notarmos, além da semelhança sonora que os nomes possuem entre si, as diversas referências ao número 5 - dia em que se arquiteta a revolução -, que sempre é tratado de maneira simbólica. “V”, primeira letra da palavra “vingança”, “vendeta” e “vengeance”, também representado por “V” em números romanos - número da cela onde ele foi aprisionado no complexo de Larkhill, espécie de prisão política. Para o nome “Evey”, percebemos que a primeira letra, “E”, é a quinta letra do alfabeto, seguido de “vey”, que se assemelha sonoramente ao nome do protagonista.
 Quando V invade a rede de televisão “BTN” – vale notar que Evey trabalha no local - para perpetuar à população londrina seus ideais libertadores, cresce entre ele e Evey a relação de confiança mútua, uma vez que, agora, a situação se inverte e é ela quem salva a vida de V, deixando um policial inconsciente. Ao mesmo tempo em que ela torna-se fiel seguidora de V, é considerada uma pessoa de alto risco ao Estado. Na residência do herói, que nos remete analogamente aos esconderijos dos super-heróis, que também necessitam preservar a identidade intacta, a relação de confiança começa a aflorar entre eles, pois Evey promete ajudar V a continuar com seu plano revolucionário: retomar o ideal de Fawkes e destruir o Parlamento.
Com diversas referências ao poder de manipulação da TV, essencialmente quando é questionado se a mentira criada para encobrir o “atentado terrorista” irá funcionar e fazer com que a população acredite, um funcionário da emissora diz a seguinte frase: “Claro que vão, essa é a BTN”, V utiliza-se desse mesmo meio para disseminar suas ideias revolucionárias, mostrando, desde aquele momento do filme, que o descontentamento da população para com o modelo autocrático já vinha acontecendo, contudo, faltavam-lhe um líder, uma mente libertária. Quando seu vídeo é exibido em todas as televisões e, principalmente, em um gigantesco telão na rua, percebe-se que as pessoas param para ouvir aquele discurso radical anti-governo, colocando em evidência, em momentos seguintes, a discordância das pessoas em relação às notícias exibidas pela “BTN”.


   Parte II: Vingança pessoal


       Quando entramos na primeira vingança de V, pisamos em um solo arenoso no que concerne a problemática que deve, aqui, ser discutida antes de continuarmos com a análise: a questão do herói ou anti-herói. Se tomarmos Aristóteles e outros filósofos e críticos da literatura, principalmente clássica, como padrão para a análise desse problema, depreendemos que V entra na categoria de anti-herói. Para o filósofo grego, o herói deve ser aquele que sobrepõe-se à raça humana, aquele que está no mesmo patamar dos deuses, ao menos em questões éticas e morais. V, ao contrário dos antigos heróis clássicos, não tem sua moral muito bem definida, uma vez que, em primeira instância, sua vingança não é para o bem coletivo, tendo, ao invés disso, sua vingança pessoal, a fim de eliminar aqueles que fizeram parte, de alguma forma, do complexo de Larkhill – prisão política -, além de usar a violência para todos os fins, não tendo piedade ao eliminar/utilizar pessoas para cumprir seus deveres de justiça.  
            Contudo, o terreno arenoso não termina por ai, pois também devemos analisar essas “figuras” que V eliminou em sua vingança pessoal, bem como “a voz de Londres”, personagem que nos remete à ideia do espetáculo midiático e ao sensacionalismo, usando todo seu poder oratório para manipular a população londrina a favor do Alto Chanceler Adam Sutler; o Bispo, que trabalhou em Larkhill torturando presos; e a médica legista, que contribuiu, na época, com a pesquisa da arma biológica, realizando os testes também nos presos. A partir disso percebe-se que essa vingança de primeiro plano contribui para a segunda etapa, uma vez que essas pessoas eliminadas, principalmente “a voz de Londres”, faziam parte de uma classe essencial ao Estado em termos de contribuição – a manipulação realizada por meio da TV e o desenvolvimento da arma biológica que contaminou a cidade, dando suporte para a ascensão do poder autocrático. Todo o andamento do filme, partindo do primeiro ao segundo estágio da vingança, pode ser representado simbolicamente no final do filme, quando V está montando seu “escudo” com peças de dominó e quando está pronto derruba todos a partir do primeiro, desencadeando o tão famoso “efeito dominó”, onde um fator levou a outro, partindo de uma problemática menor – a prisão de V em Larkhill criando um “monstro”, como ele se auto-denomina – a maior – o colapso do governo pelo cidadão que sofreu, diretamente, com represálias desse poder totalirário. Mesmo com a vingança pessoal dando alicerce à coletiva, V não perde a classificação de “anti-herói”.
            No momento em que o protagonista está realizando sua vingança, Evey está escondida na casa de seu amigo humorista, que também possui ideologias transgressoras e possui artefatos considerados “perigosos” aos olhos do Estado, como o Alcorão – livro sagrado dos muçulmanos –, mostrando, assim, a repressão religiosa que os habitantes sofriam. Mostrando para o país inteiro seus ideais ao ignorar a comissão de censura da BTN, ele apresenta um programa com várias críticas ao governo, como vários policiais apontando suas armas à plateia, fazendo com que eles aplaudam a entrada da personagem que representava o Chanceler Adam Sutler, mostrando-o como sendo o próprio terrorista do país, não V. Ao sofrer as consequências e ser capturado, a cena do quarto nos remete às lembranças de Evey, pois há extrema semelhança entre a captura de seus pais e do humorista. Para fugir, a protagonista pula da janela e é capturada por uma pessoa, dando entrada ao terceiro e último estágio do longa.


Parte III: Vingança coletiva


Na primeira vez que assistimos o filme somos levados a crer que o Estado capturou Evey e a está usando para conseguir informações sobre V, mas não. Quem na verdade captura a protagonista é V e seu intuito é fazer com que ela perca seus medos, que tenha o mesmo sentimento de revolta que ele possui. Para isso, ele utiliza a mesma carta que serviu de base para sua revolta: a história de Valerie, personagem homossexual que conta seu sofrimento causado pela perseguição do Estado a fim de capturar cidadãos com outro tipo de escolha sexual que não fosse o heterossexualismo. Depois de todo esse processo, V finalmente tem Evey a seu lado, tendo-a como fiel escudeira.
As ideias de V tiveram forte impacto na população que ouviu seu discurso pela TV, causando uma série de fatos que deixaram a população extremamente consciente de sua situação política, abrindo espaço para milhares de adeptos e tornando possível uma revolução. Com a desfragmentação do poder autoritário – traição por parte de membros do partido e o discurso oficial de Adam Sutler ser assistido por cadeiras e salas vazias (uma das cenas mais geniais do filme) – e a morte do Alto Chanceler, a revolução se instaurou facilmente, apesar dos milhares de soldados que foram convocados para conter os ânimos revolucionários. Vale, nesse momento, citar mais um célebre diálogo do longa – a todo momento os diálogos são fortes e denunciam abusos de poder - : quando todos os militares estão com as armas apontadas no sentido do contingente de pessoas que usavam a máscara de Guy Fawkes, questionam sobre o que irá acontecer e a resposta é simples e repreensiva: “O que sempre acontece quando pessoas desarmadas enfrentam pessoas armadas”.

Ao final, conclui-se o ato que foi tentado por Guy Fawkes anos antes: a destruição do Parlamento. Essa queda do prédio simboliza muito mais do que simplesmente parece, pois destrói-se a representação, a imagem do autoritarismo, tornando esse ato como uma alegoria do descontentamento da população com o poder que se instaurou até aquele momento. Sendo, então, a vingança de V para toda a população, pois suas ideias de revolução, a partir de sua revolta, mudaram a vida de todos os cidadãos que também sofriam com o poder autoritário. 



terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A sobriedade em “Abraços Partidos”

Em 2009 chegava nas telas dos cinemas o mais novo filme do diretor espanhol Pedro Almodóvar, Abraços Partidos, filme tomado por diversos flashblacks, misturando o presente de 2009 e o passado dos anos de 1992 e 1994.

A personagem protagonista Mateo Blanco/Harry Caine nos conta, já nos minutos iniciais, um pouco do seu passado: nasceu como Mateo Blanco, um diretor de cinema, mas desde criança queria ser alguém além dele mesmo, queria poder ser outro e viver como outro, o que o fez criar o pseudônimo Harry Caine, o qual utilizava para assinar seus livros e roteiros utilizados em seus filmes. Entretanto, por circunstancia não ditas em princípio, Mateo precisará abandonar de vez seu nome verdadeiro e viver da sua personalidade criada, tendo que lidar com a surpresa de Caine agora ser um escritor e roteirista cego.

Assim a película se encaminha até o momento em que Caine é procurado por um fantasma do seu passado, fazendo com que, aos poucos e a partir de seu olhar, ele conte ao seu ajudante e filho de sua agente, Judit Garcia, a sua tumultuada história de amor e paixão por Lena, personagem vivida por Penélope Cruz.


As vidas das duas personagens se cruzam em 1994, no momento em que Lena vai até o escritório de Mateo para fazer um teste para participar do primeiro filme de comédia do diretor, “Garotas e Malas”. Em princípio, o marido de Lena, o milionário empresário Ernesto Martel, mostra-se contra o desejo da mulher em se tornar atriz, mas termina por aceitar e até mesmo ajuda a financiar o filme, manobra extremamente fundamental para o decorrer do enredo, afinal Ernesto é uma personagem baixa e ciumenta, não medindo esforços para saber cada passo de Lena dentro do estúdio.

As cores tão presentes nos filmes de Almodóvar, que transmitem as tensões e os sentimentos vividos pelas personagens, ainda possuem grande espaço na trama de “Abraços Partidos”, mas o melodrama, característica marcante dos filmes do cineasta espanhol, é tratado aqui de forma mais sóbria e pautada no real, o que para muitos críticos foi um retrocesso artístico na carreira do diretor e para tantos outros uma amostra de amadurecimento intelectual.



Também vale a ressalva para a metalinguagem explorada na narrativa fílmica: temos a história de um diretor apaixonado pela musa de seu filme. Sabemos, obviamente, que Almodóvar possui um outro tipo de amor e admiração pela sua eterna musa Penélope Cruz. Além disso, há grandes referências aos filmes de comédia do diretor dentro do filme “Garotas e Malas”, é só lembrarmos das confusões e dramas vividos pelas mulheres em “Mulheres a beira de um ataque de nervos” ou de “Kika”.

No mais, o filme deve ser visto e apreciado como uma obra destoante do acervo de Almodóvar: é cruel, fria e real.

Por: Jéssica Fabrícia.


domingo, 12 de janeiro de 2014

A pele e o cárcere


Para dar o pontapé inicial ao blog, cada autor escolheu um filme que este considera como sendo o melhor dos últimos cinco anos. Tendo uma fotografia magnífica, uma filmagem fantástica e a melhor atuação de Antonio Banderas, meu filme escolhido foi A pele que habito, baseado no romance de Thierry Jonquet, Mygale (1995), ou Tarántula (2005) de 2011, dirigido por Pedro Almodóvar, rendendo a ele o “Globo de Ouro” em 2012 na categoria de “Melhor filme estrangeiro”.

Antonio Banderas e Elena Anaya
O filme se inicia com a personagem de Elena Anaya, Vera Cruz, presa a um quarto, praticando exaustivamente exercícios de yoga e recebendo sua comida por um elevador. Seu contato com o mundo exterior dá-se somente por meio de um interfone, podendo realizar seus pedidos à governanta da casa, Marília, interpretada por Marisa Paredes. O local em que fica a casa nos é apresentado como “El Cigarral”, sendo Robert Ledgard – Antonio Banderas – o dono deste lugar encantador e luxuoso. Berto é médico e acadêmico, tendo uma clínica própria no Cigarral, onde ele e sua equipe realizam cirurgias autônomas para mudança de sexo – o que é apenas mostrado no filme por meio de dicas. 


               Logo no começo da película, quando Berto está apresentando seu trabalho inovador à comunidade científica, várias críticas lhe são dirigidas, uma vez que ele está praticando experiências que envolvem transgênese em humanos – prática esta que é veementemente proibida em todo o mundo. Logo em seguida descobrimos que seus experimentos têm, por fim, criar um novo tipo de tecido humano muito mais resistente, tendo Vera como sua cobaia. A estranha relação dos dois continua a se desenrolar, sendo mostrado durante o filme que ela não se baseia somente na relação descrita anteriormente, mas também de louvor. É como se Berto apreciasse uma obra de arte, uma criação sua, nos momentos em que ele se tranca em um cômodo ao lado do quarto de Vera e ali fica a admirá-la por meio de uma tela gigantesca. 


                 No momento em que uma visita inesperada aparece, o filme começa a tomar corpo como obra artística, pois é quando o filho de Marília, fantasiado esdruxulamente de tigre para o baile de Carnaval, estupra Vera e revelações começam a tomar conta do filme. Percebe-se, aqui, a fidelidade que a governanta da casa mantém com o médico, uma vez que ela assiste de camarote à morte do próprio filho sem tomar atitude alguma para deter o ato. Ela simplesmente se livra das evidências para que a vida dos que ali vivem continue seguindo normalmente.
            Tendo a prisioneira finalmente fora de seu quarto devido às atitudes violentas que foram realizadas sobre ela, fica evidente a relação do cárcere, o fechado, o subjugado, com as revelações apresentadas. Enquanto Vera mantinha-se privada do mundo exterior, em seu quarto, o filme toma seu rumo normal e nada nos é apresentado, apenas as personagens e seus devidos papéis no filme, contudo, é quando esta entra em contato com o lado exterior que o enredo começa a mostrar-se claro ao espectador, pois é exatamente nesse momento que as mais importantes revelações do filme são apresentadas ao espectador, estas que são a chave-mestra para poder entender todo o resto do complexo enredo, principalmente, e acima de tudo, o porquê daquela mulher estar confinada em um quarto dentro da própria casa.
            É partir dessas revelações que a história entra em um segundo momento, que é quando o casal está dormindo e o motivo do cárcere começa a ser contado sob duas perspectivas totalmente diferentes: primeiramente a de Berto e depois a de Vera. Na primeira, mostra-se o pseudo-estrupro que a filha do médico sofrera seis anos antes da história narrada, ato que foi realizado pelo jovem Vicente, interpretado por Jan Cornet. Na segunda, percebemos que o viés de Berto não passa de uma ilusão criada por ele próprio, uma vez que o estupro de fato não aconteceu. Vicente apenas se assustou com os gritos dados por Norma – filha do médico – enquanto tocava a música que a garota cantava quando pequena no momento em que sua mãe se atirou pela janela, cometendo suicídio. A partir de sua fissura por vingança, o jovem é raptado por Berto e dá-se início a uma doentia busca pela imagem de sua falecida esposa.
            Neste segundo momento do filme percebemos o embasamento nas obras clássicas de ficção científica, onde um “cientista maluco” – assim chamado por críticos, inclusive, especializados em cinema e literatura – cria um monstro a seu gosto, como é o caso de Frankstein, famosa obra literária que é considerada como o primeiro romance de ficção científica, tendo várias adaptações ao cinema e aos desenhos animados. Almodóvar recria brilhantemente a imagem do “cientista maluco” das obras do século XVIII e XIX, sendo visível a construção de uma personagem com caráter egocêntrico, ambicioso e arrogante, colocando suas experiências científicas acima de qualquer Comitê de Ética, além de não poupar esforços para concluir seu projeto mais fascinante.   



 
          No filme são apresentados todos os estágios da “criação” de Berto, passando pela vaginoplastia até os tecidos modeladores que são colocados no corpo de Vicente – agora chamado de Vera – e a máscara, que provavelmente foi colocada nele devido a uma série de cirurgias plásticas no rosto. Até que, por fim, chega-se ao estágio final de sua obra: a encantadora Vera, que assemelha-se fortemente à imagem de sua mulher, observação incessantemente repetida por Marília e seu filho.
            E no corpo de fundo dos filmes do Almodóvar quase sempre encontramos a temática da sexualidade, A pele que habito não poderia deixar a desejar nesse quesito. Contudo, na obra, não encontramos uma personagem que conta suas histórias amorosas ligadas à homossexualidade – Má Educação (2004) – ou uma comédia onde todos os pilotos e aeromoços mantém casos entre eles e causam muita confusão em voo – Os amantes passageiros (2013) –, mas um homem que vê-se forçado, obrigado, a mudar totalmente sua sexualidade, tendo que conviver com isso diariamente. Mais uma vez volta-se à questão do cárcere, onde a pele que agora é habitada por Vicente, prende-o ao que ele será pelo resto de sua vida. A representação espacial do confinamento no quarto está diretamente ligada à nova vida de Vera.



Por: Rafael